A vida nos quer vivos. Para além do todo-dia-tudo-igual, existe uma potência que quer se expressar. Está ali, debaixo da luta pela sobrevivência, procrastinando, sufocada sob pilhas de prazeres superficiais e montanhas de desculpas.
Achá-la, pede vontade. Vontade forte. Vontade, ainda que pela metade, ou por menos da metade, volúvel e volátil, de curta duração. Acorda toda disposta e, no primeiro gole do café, entra em cena a desculpa: amanhã cortará o açúcar. Hoje, a cabeça dói, o sono foi conturbado, é preciso energia. Promete dormir mais cedo. Duas colheres bem cheias na cafeína líquida e o dia começa. Algo se frustra.
Demandas surgem de todos os cantos, até de onde não existiam. Atropelam a vontade, que já vinha meio bamba. Eu queria..., arrisca ela a dizer. Desculpa ouve, mas interrompe: sabe que a outra quer falar com ela, jura que vai ouvi-la, só que daqui a pouco, pode ser? Agora, veja só quantas coisas para consertar! Mais tarde conversam, promete. E a vontade, vendo a boa vontade da outra, decide acreditar: à noite, então? Claro. Vem a noite e o corpo esgotado só pede cama. A vontade até tenta puxar uma conversa, mas, quando ouve o tom da resposta, apieda-se da desculpa e concorda que é melhor descansar. Amanhã. Algo se frustra.
E assim, a cada momento, há sempre algo mais urgente. Vontade vai sendo transferida daqui para lá, de lá para cá, sempre fora do caminho das imprescindíveis demandas da desculpa. As urgências são tão urgentíssimas, que soam incontestáveis. Amanhã será diferente. Algo se frustra.
Amanhã vira hoje. Hoje vira amanhã. Todo-dia-tudo-igual. Montanhas de desculpas justificadas e pilhas diárias de... Algo que se frustra.
Para a vontade, restam os conselhos da noite. Um sono bem dormido renova o corpo e ela mesma. Hoje é dia de fazer diferente: café sem açúcar. Desculpa se assusta com o ânimo da vontade. Conhece esse impulso de há muito. Quase ri, mas se contém. Parabeniza-a e diz que sim, hoje e para sempre, café sem açúcar. Bate palmas e dão o primeiro gole da xícara recém--servida. Engasgam-se. Como é amargo! Uma colherinha de açúcar faria toda a diferença, sugere a vontade, que já vinha meio bamba... Hoje, não, sejamos fortes, incentiva a desculpa. Isso mesmo, sejamos fortes, anima-se a outra. No almoço, a vontade, animada, recusa o açúcar do café. Desculpa observa a meia careta. Algo se frustra.
Na manhã seguinte, diante da xícara de todo dia, desculpa conversa com vontade. É amargo. Precisa mesmo cortar o açúcar de vez? Noite difícil, corpo cansado, frio, vida cinza. Um docinho faria toda a diferença. Ontem foi tão fácil tirar o açúcar, amanhã será também. Vontade, em menos da metade, resolve discordar, só dessa vez. Começarão o dia sem o doce na boca. Mais tarde, se o corpo não despertar, conversam. Depois do almoço, duas vezes o açúcar no café. De novo. Algo se frustra.
Mas, como toda boa vontade, mesmo bamba, não desiste. Por um acaso, o açúcar acaba num dia tempestade. Vontade fraca, sufocada pela preguiça, não sai de casa. Café amargo até a chuva acabar. Um, dois, três dias de chuva interminável. Ruas alagadas. Desculpa esbraveja, reclama, bate o pé, não se conforma por ficar naquela amargura. Vontade se dispõe a sair no temporal, sempre solícita às demandas da outra, mas preguiça é imbatível. O aguaceiro vai passar, enquanto isso, que ambas se acalmem. As duas se frustram.
Cinco dias se passam. Sem açúcar. Preguiça venceu, desculpa se calou. Vontade acordou: sim, cinco dias de café-só-café. Quase ri, mas se contém. Conhece esse impulso de há pouco. Desculpa olha, enfraquecida. Algo se frustra.
O fim da chuva coincide com o da preguiça. Desculpa logo pede o doce de volta. Vontade ouve, mas interrompe: sabe que a outra tem razão, jura que vai ouvi-la, só que daqui a pouco, pode ser? Agora, veja só quantas coisas para por em dia! Mais tarde conversam, promete. E a desculpa, vendo a boa vontade da outra, decide acreditar: à noite, então? Claro. Vem a noite e o corpo esgotado só pede cama. Desculpa até tenta puxar uma conversa, mas quando ouve o tom da resposta, apieda-se da vontade e concorda que é melhor descansar. Amanhã. Algo se conquista. Hoje, algo se frustra.
Vontade cria demandas de todos os cantos, até de onde não existiam. Atropelam a desculpa, que não tem tempo de se expressar. E assim, a cada momento, há sempre algo mais urgente. Desculpa vai sendo transferida daqui para lá, de lá para cá. As urgências mostram-se incontestáveis. Amanhã será diferente. Algo se conquista. Hoje, algo se frustra.
Amanhã vira hoje. Hoje vira amanhã. Todo-dia-tudo-diferente. Montanhas de vontades realizadas e pilhas diárias de algo que se conquista. .
Elissa Khoury
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