Neste lugar, de muito tempo atrás, homem, mulher e dois filhos viajam de terras distantes. Um terceiro vem na barriga, inesperado, não planejado. Viajam por desejo da mulher. O lugar de nascimento da criança há de ser perto dos avós maternos, pois há muito a mulher não os via. Marido aceita a ideia, porque desejo de esposa grávida é lei indiscutível. Cruzam mares e florestas e estradas de pedregulhos. No lugar de destino, os pais da futura mãe-de-novo, aguardam a chegada de todos.
Eis que a criança nasce, terceira e não terceiro. Homem, mulher e pequenos tornam-se cinco e de cinco não passam mais.
Os cinco recém-chegados com tão calorosa acolhida, descansam e compartilham momentos de pura alegria. Desejo nasce de novo, na esposa-agora-mãe. Quer fixar moradia nesse antigo povoado. Decisão tomada de susto, sem plano nem aviso. A mulher chama o marido e, com ele, logo comenta que, deste lado do mar, as terras são mais férteis. O homem de pronto rebate: o céu é menos azul. No céu, nada se planta; no solo, tudo germina. Abrigo tinham achado, trabalho não tardaria, eram ambos esforçados.
Decisão tomada de susto, sem plano nem aviso, pedia despedida para seguir novo caminho. Retornar era preciso, para lá e para cá. Vão os cinco? Deveriam. Se forem, não voltam mais. O azul do céu é cativante, a mulher sabe bem disso. E agora, o que fazer? Quatro vão e uma fica, a menor, não planejada. Avós e tios ali estavam, melhores mãos não havia para os cuidados com a menina. Voltam logo, prometido.
No além-mar, todos sabem, o azul do céu é mais bonito. Mas faltava uma, eram cinco. Não podiam ali ficar. Recolhem seus pertences e se encaminham para as despedidas quando um vento sopra forte e atrasa o retorno. Luas vêm, luas vão e o “voltam logo” se descumpre. Cruzam mares e florestas e estradas de pedregulhos.
Abrigo tinham achado, trabalho não tardaria, eram todos esforçados. O que se planta com carinho, em solo fértil e bem cuidado, um dia cresce bonito. Pai e mãe, homem mulher, compram terra, montam casa, e esses cinco então se mudam com plantio e colheita própria.
Um dia, porque sempre tem um dia, crianças crescem e adultos envelhecem. Na casa daqueles cinco, chega a hora da partida. Os três, agora criados, preparam-se para a despedida. Aos pés de cada cama, um saquinho de veludo. Todos eles com sementes, presenteadas pelos pais.
Saquinhos de veludo que esses pais também receberam de seus próprios pais, que receberam dos pais deles, e dos pais deles, e dos pais deles e assim nesse sem-fim desde o início dos tempos.
Os dois mais velhos logo viram os saquinhos que lhes cabiam. Cada um pegou o seu e foi logo agradecer a esses dois que eram tantos. Homem e mulher, pai e mãe, logo viram nas mãos dos rapazes os presentes prosseguirem. Engrandeceram.
A moça, no entanto, sem saber o seu lugar, até viu ao pé da cama o veludo colorido. Mesma forma, mesma cor, mesmo tamanho e laço de fita. Não pegou, não era seu. Acidente, esquecimento ou a parte dividida que cabia a seus irmãos.
Recolheu suas coisas todas, pediu a benção dos pais e saiu mundo afora, com vigor, mas sem sementes. E ali, ao pé da cama, um saquinho de veludo não seguiu o seu caminho. Homem e mulher, pai e mãe, encolheram de tristeza, mas isso a moça não viu.
Passeou por povoados, trabalhou em todos eles. Era hábil no arado e plantou muitas sementes. Jogou água, adubou, protegeu-as do vento e da chuva. Tratou-as como se suas, mas nenhuma lhe pertencia. Colheu frutos, degustou-os: suculentos, coloridos. Mas, depois do sabor primeiro, restava um vazio na barriga. Vivia em busca do fruto que o ventre preenchesse de vez. De terra em terra, de casa em casa, de arado em arado, sempre seguia. E o vazio da barriga crescia. Buscou frutos e raízes, tubérculos e folhas. Tomou tônicos e poções, consultou sábios e feiticeiros. Depois do efeito primeiro, voltava o vazio da barriga.
Até que um dia, porque sempre tem um dia, cansou-se da caminhada. Pelos caminhos da estrada, avistou uma paragem que ainda não conhecia. Decidiu oferecer suas habilidades já treinadas e por lá permanecer com sua fome sem fim da barriga não saciada.
A velha dona da casa desconfiou da desconhecida. Como tinha ela chegado às portas de sua morada? A moça então explicou sua busca e seu cansaço. Já que nada lhe preenchia a sensação de barriga vazia, desistiu da caminhada e agora só pedia trabalho, um naco de pão e um pouco de repouso. Olhando-a de cima a baixo, a velha respondeu que abrigo tinha achado e trabalho não faltaria. Fosse mesmo esforçada, talvez até conseguisse a resposta tão procurada.
Tarefas não lhe faltaram. Era hábil no arado e plantou muitas sementes. Jogou água, adubou, protegeu-as do vento e da chuva. Tratou-as como se suas, mas nenhuma lhe pertencia.
Depois da lida diária, a velha chamou a moça para junto dela, ao pé da lareira. Que se sentasse ali um pouco, olhasse o fogo e as labaredas. Abrigo tinha achado, trabalho não lhe faltava, era mesmo esforçada. Mas um vazio ali havia, bem no fundo da barriga, que nem todo o cansaço era capaz de apaziguar. A cura existia, escrita ali no fogo, era capaz de a enxergar?
A moça olhou a chama e pensou que a velha brincava. Voltou-se para ela, e viu em seus olhos profundos, que brincadeira não existia. Olhou e olhou o fogo, mas nada consegui enxergar além da dança da chama.
Tarefas não lhe faltaram. Arrumou casa, cuidou de bichos, aprendeu até a tecer. Uma segunda vez foi chamada pela velha ao pé da lareira. Uma segunda vez nada enxergou além da dança da chama. A velha então insistiu que a moça olhasse a fumaça. Uma forma ali havia, sempre a mesma, todas as noites. A moça bem se esforçou, mas só conseguiu distinguir um volume de fumaça grande embaixo e menor em cima.
Tarefas não lhe faltaram. Ouviu muitas histórias e dormia tão cansada que por vezes se esquecia do vazio que a acompanhava. Uma terceira vez foi chamada pela velha ao pé da lareira. O vazio ainda havia, bem no fundo da barriga, que nem todo o cansaço era capaz de apaziguar. A cura existia, escrita ali no fogo, seria desta vez capaz de a enxergar? Pela terceira vez olhou. Olhou e olhou a chama e a fumaça que se formava. Os olhos da moça pararam num ponto que só ela viu. A forma grande embaixo e menor em cima de novo apareceu. Desta vez se revelou: um saquinho de veludo, deixado ao pé de uma cama, que não seguiu o seu caminho.
De susto a moça pulou, e a velha soube na hora que a outra tinha encontrado a resposta tão procurada. Volte lá, eles te esperam. A moça não aguardou o nascer do novo dia. Aceitou da velha uma trouxa com mantimentos para a viagem, beijou as mãos enrugadas e recebeu um beijo na testa.
Cruzou montanhas e florestas e estradas de pedregulhos. Voltou à casa dos pais e encontrou-os tão mais velhos. Ajudou-os na lida da casa, no plantio e na colheita. Contou de suas andanças, seus trabalhos, sua busca. Finalmente entendia que só há um tipo de semente que cure o vazio da barriga. Desculpou-se, pois não sabia que a corrente das sementes tem a justa e perfeita medida. Pai e mãe, homem e mulher, novamente engrandeceram e levaram a pequena para o antigo quarto em que dormia.
Ali, ao pé de uma cama, um saquinho de veludo aguardava seu caminho. Todo ano, depois da colheita, pai e mãe, homem e mulher, mantinham frescas as sementes do saquinho da menina. Eram dela, sempre foram. Que as plantasse, que as colhesse e que cuidasse sempre delas.
E foi assim que a moça, tão hábil no arado, plantou suas sementes. Jogou água, adubou, protegeu-as do vento e da chuva. Colheu frutos, degustou-os: suculentos, coloridos. E depois do gosto primeiro, vinha o gosto segundo, seguido de um terceiro. Nunca mais se teve notícia de um antigo vazio na barriga.
Elissa Khoury
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