Todo o conto é uma narrativa breve e concisa em que quase tudo é um ou uma: um tema, uma ação, um tempo. Personagens não são exclusivas, mas também não se encaixam multidões. Usemo-las com moderação.
Aqui, existem duas: Ela e sua versão diminuta, em fase de crescimento. Sim, os genes dos pais são transmitidos para os filhos a cada geração, numa cadeia que só tem fim quando o último dos descendentes não passa o fio da vida adiante. Os sobrenomes podem cair, mas a herança genética permanece. Para o bem e para o mal. Haja constelação, terapia, mandinga, passe, ressignificação, astrologia, tarô, aromas, sais, orixás, reza brava, fé, ciência ou qualquer outro meio de autoeducação para ultrapassarmos nossos limites internos. Esses mesmos, herdados pelo DNA e por nossa primeira infância. Finda a digressão e apresentadas as protagonistas, voltemos à narrativa.
Ela e Elazinha chegam naquele ponto em que o diminutivo não cabe mais. Branca de Neve cresce. E vai envelhecer também, mas não já. Unidade de tempo, lembram-se do conto? A mãe deu o que tinha para a filha, que recebeu a herança até o diminutivo não caber mais. Este agora. Tornou-se Ela’. E agora?
Agora Ela’ já decide a própria roupa, o corte de cabelo, a maquiagem, prefere a companhia das amigas e passa horas trancada no quarto. Faíscas saem das conversas com e contra a mãe. Da boca para fora, da orelha para dentro, num mundo de perguntas sem resposta em ambos os lados: onde foi que eu errei? Não se pode perguntar mais nada nesta casa? O que foi que eu fiz para ter uma mãe dessas? Quem mandou eu nascer nesta família? Será que é tão difícil de entender?
Bocas e orelhas não soltam apenas farpas, claro. Há que se compreender o amor que se despe da antiga roupa e fica assim, meio sem saber como se vestir, enquanto não encontra seu novo figurino. Precisa de tempo, porque o corpo atravessa revoluções antes de chegar em uma forma aparentemente estável.
A ação é Ela’ decidir cursar faculdade em outro estado. Passou no vestibular em uma Universidade pública, para orgulho dos pais e alívio dos bolsos. Só que longe. Outro estado. Bem que podia ser um pouquinho mais perto, para poder passar os finais de semana em família, comer comidinha caseira, trazer a roupa para lavar, enfim, ficar com um pé na meninice e outro na “adultice”. É muito cedo para enfrentar essa crise de crescimento. Ela’ ainda é uma menina! Mas virar um daqueles adultos que nunca crescem também não. Isso não. Não foi para isso que essa menina veio à luz. De jeito nenhum.
Ainda bem que a madrinha de Ela’ tem um quarto disponível em casa. Da filha, já casada e morando em outro país. Outro país, já pensou? Não, não queria nem pensar, mudança estado era mais do que suficiente. A madrinha não tinha a menor condição de acompanhar Ela’ nas idas e vindas da faculdade, mas a filha estaria num lar seguro. E limpo. E com uma senhora confiável por perto. Vigilante. Bastava.
Claro que Ela acompanharia Ela’ ao novo destino. Passagens foram compradas desde o dia da matrícula, feita pelo computador. Queria tanto que as aulas fossem virtuais também.... Abanou a ideia da cabeça como se fosse uma mosca zunindo diante dos olhos. Bobagem. Lembrou-se dos próprios tempos de caloura e da turma de amigos, cultivada até o presente. Nada substitui o vínculo e as experiências presenciais. Tempo de descobertas sem a pilha de boletos sobre a mesa no final do mês.
Boletos que suspendem os planos de mãe e filha. Engenheira de uma petroquímica, a presença de Ela é solicitada em uma plataforma do outro lado do país. Rasteira dada pela vida, como sempre, sem aviso. Perguntou o grau de urgência do enguiço, explicou a situação, pediu só dois dias de prazo. Acompanharia a filha até o destino e seguiria na manhã seguinte para a plataforma. Não tinham esse tempo, o problema era grave e acarretaria prejuízos enormes à empresa. Vontade de se demitir, largar tudo para encaminhar a pequena. Tão pequena ainda. Responsabilidade fala mais alto e boletos também. Relógio trabalha contra a família.
Duas malas feitas durante a noite. Uma, pequena, para poucos dias; outra, grande, e pequena demais para um quinto de vida inteira. Enquanto uma dorme, a outra só descansa depois de conseguir passagens aéreas em horários próximos no mesmo aeroporto. Só o que pode fazer.
O trajeto do táxi ao aeroporto não comporta todos os conselhos, as lembranças e as conversas que não terão na aeronave. Ela dá o que tem para dar e Ela’, mais uma vez, recebe o que lhe é dado. A iminência da separação aceita todos os diminutivos. Fora da boca de uma e dentro das orelhas da outra, um mundo afirmações amorosas de ambos os lados: amo você. Pode me ligar sempre que quiser, mesmo que seja só para ficar quieta. Cuidado no seu trabalho. Descubra do que você gosta de verdade. Se achar que está no curso errado, mude. Recomece. Você é a melhor mãe do mundo.
Duas aeronaves partem do mesmo aeroporto em horários e com destinos diferentes. O diminutivo não cabe mais e sempre caberá.
Elissa Khoury
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