Sr. Silva, há vinte e cinco anos, tem um negócio estabelecido. Sobreviveu a todas as crises do caminho e prosperou. Não é um comércio imenso, mas correto. Começou numa sobreloja com entregas em domicílio, feitas por ele mesmo. Hoje, tem dois pontos de venda e mais um, apenas para atender pedidos não presenciais.
Sr. Silva, com esse negócio, emprega mais de cem pessoas e preza pelo bom atendimento de cada cliente. Tem como sócia a Sra. Ana, sua irmã, essencial para o bom curso das atividades desenvolvidas. Donana, como prefere ser chamada.
Certa ocasião, Sr. Silva foi procurado por um grupo de jovens entusiastas. Ofereceram-lhe uma ferramenta digital que gerenciasse a fila dos clientes de suas duas lojas. Com ela, não seria mais necessário ficar na calçada esperando ser atendido. Bastava colocar o nome no aplicativo do telefone e acompanhar, a distância, a própria vez na fila. Coisa boa essa.
Sr. Silva sentou-se para conversar com os jovens entusiastas e viu neles almas dedicadas e belos sonhos. Resolveu sonhar junto. Tornou-se o anjo dos meninos: investiu na ferramenta, apresentou-os a pessoas estratégicas do ramo, fez de seus estabelecimentos laboratórios de testes e deixou-os trabalharem livremente, afinal, belos sonhos precisam um empurrãozinho para se concretizarem. Houve erros e acertos. Mais acertos do que erros.
Os jovens entusiastas puderam oferecer a tal tecnologia a outros empresários do ramo e foram fazendo o que lhes cabia fazer, num trabalho engajado, com o empurrãozinho financeiro de Sr. Silva e Donana.
Vinte e cinco anos de histórias compartilhadas nesses três pontos comerciais sustentam a família Silva. Colaboradores e clientes entretecem suas vidas com as dos Silva. Estes, acompanharam a doença terminal da esposa do colaborador Rocha, sofreram juntos com o acidente de carro que vitimou três pessoas da família do Sr. Pereira; comemoraram a formatura da menina Clara, agora doutora; foram padrinhos da primogênita dos Melo. Há também Sr. Leopoldo, de segunda a segunda, no final de tarde, para seu dedo de prosa e seu gole da garrafa que já deixa comprada no estabelecimento. Nela, só ele mexe.
Eis que um dia, os jovens entusiastas aparecem com a notícia de que uma Grande Empresa, multinacional, interessou-se pela tecnologia desenvolvida por eles e decidiu investir no negócio. Empurrão maior, quase um elevador, para o belo sonho conjunto. Olhos do Sr. Silva brilham: bem que ele tinha visto as almas engajadas e o sonho bonito nos olhos dos entusiastas. Chega em casa pisando leve, quase saltitando, meio sorriso nos lábios ao contar a notícia para a esposa. Coisa boa concretização.
Liga para Donana e explica que o elevador não vinha pronto, claro. Primeiro, um investimento para desenvolver a ferramenta e multiplicá-la em escala nunca antes conseguida. Depois, a saída do anjo do grupo. Bastava assinar um contrato encaminhado por e-mail. Sr. Silva para por um instante. Instala-se a dúvida: qual contrato? Como, onde, quando ocorreram as negociações? Por que ele não tinha sido avisado? Por que teria que sair do negócio? Haveria escolha? Perguntas demais, respostas de menos.
Os jovens entusiastas contaram que a Grande Empresa só se interessava por pessoas que dedicassem todo o seu tempo a ela, como partes de seu quadro de colaboradores. Não lhe interessava sócios. Sr. Silva entendeu a lógica de funcionamento da Grande Empresa, mas ainda não compreendia sua exclusão e a necessidade de assinar um documento da noite para o dia sem aviso prévio. Disse aos jovens entusiastas que precisava de tempo para ler a papelada e consultou seu advogado, o mesmo que tornou possível o empurrãozinho inicial.
O advogado leu a proposta e tranquilizou o cliente. Que não se preocupasse, pois os entusiastas só poderiam tirá-lo do negócio se também saíssem dele. Isso mesmo, quando o advogado propôs as condições do empurrão inicial, garantiu a segurança dos Silva. Tudo feito às claras, nos vários encontros tidos entre eles, antes de juntarem seus sonhos. Que não assinasse nada naquele momento, até entenderem o que acontecia.
Os jovens entusiastas ligaram, um a um, ao Sr. Silva. Tinham transferido seus sonhos para o quadro de colaboradores da Grande Empresa. Era a chance de trabalho, era o futuro, era a oportunidade da vida deles. Deram tudo de si para mostrarem à Grande Empresa o valor que tinham. Iria o parceiro de todas as horas, Sr. Silva, impedir esse sonho maior?
Sr. Silva viu-se como a pedra no sapato. A casinha bem no meio do terreno enorme, adquirido por uma Grande Incorporadora; a tábua que impede a avalanche; o enguiço no vertedouro da barragem. Logo ele, que tinha sonhado junto com os entusiastas, que acreditou neles, estava sendo dispensado. Ainda queria sonhar mais um pouco. Ao mesmo tempo, não queria ver seus meninos perdendo a chance da vida deles. Eram seus meninos.
Como as negociações tinham acontecido? Precisava de um tempo que não queriam lhe dar. A urgência da assinatura e o risco da ruína roubaram suas noites, seus dias, seus pensamentos, seu sorriso.
Sr. Silva, com seus três pontos de venda, via-se diante de uma escala multinacional de negócios assombrando-lhe as horas, os minutos, os segundos. Urgência, ruína, papel assinado, sonho assassinado. O que fazer? Consultou o advogado, amigos de outras grandes empresas, familiares e bruxos. Ganhou costas arqueadas, ombros caídos, e quilos a mais, comprovados pela balança do banheiro. Perdeu as noites de sono e os dias de resolver os habituais imprevistos de seu comércio. Perdeu o sossego.
Ouviu prós e contras. Havia aqueles que condenavam o comportamento dos jovens entusiastas, incentivando que os processasse por falta de transparência e lealdade. Também aqueles que lhe diziam para assinar logo a liberdade dos jovens, permitindo que alçassem voo sozinhos. Donana lhe disse que não tinha vocação para pedra, nem tábua, nem enguiço. Havia ainda aqueles que entendiam a dinâmica das grandes empresas com seus contratos devoradores de almas. Diante de tamanho poder, que ferramentas teria em mãos para negociar? Lealdade, princípios, valores, dizia a Filosofia. Queria ele estar do lado de quem: dos jovens entusiastas ou da justiça?
Aguarde, disse-lhe o oráculo do bruxo.
Pegue tudo o que ouviu e leve para o sono, disse-lhe a esposa, iniciante no detrás das coisas. Acorde, ouça uma bela música, prepare um escalda-pés. A resposta existe, só precisa ser encontrada. Somente quando tiver a sua verdade terá força suficiente manter-se firme. Sempre elogiara a intuição do marido, chegava o momento de confiar nela.
E se estragasse o sonho dos jovens? E se arruinasse a vida deles? Como viveria com tamanha culpa? Todas as pessoas em quem confiava, a favor ou contra a assinatura, haviam lhe dito que o problema não tinha sido criado por ele. Os entusiastas eram os responsáveis por aquela situação; eles que o tirassem dela. Se a assinatura era de Silva, que usasse o tempo necessário para grafá-la. E se a Grande Empresa desistisse de tudo? Era um risco. Tudo era risco. A força viria da certeza interior; fora, tudo dúvida. Panela de pressão tem válvula. Usou-a.
Filosofia, escalda-pés, oráculo, advogado, amigos conselheiros, conversas, caminhadas, mundo de feras. Ouviu até convite de atropelo: se quisesse, outra Grande Empresa poderia dobrar a proposta. Agradeceu e declinou, uma panela de pressão era-lhe suficiente.
Eis que a Grande Empresa aparece, querendo conhecer a pedra, a tábua, o enguiço que atendia por nome de Silva. Telefonema e reunião digital agendada. Todos presentes para esclarecimento da situação. Em dado momento, jovens entusiastas são dispensados e, no um-a-um, David e Golias, encontram-se mais uma vez. Quem é você, Sr. Silva? Quem são esses jovens entusiastas? Por que interrompe o fluxo das coisas?
Era Silva, proprietário de três pontos de venda, primeiro a acreditar no sonho dos jovens. Reconheceu o entusiasmo e sonhou junto. Ofereceu o próprio advogado para acertarem o empurrãozinho. Tudo às claras, de comum acordo. Gostava dos meninos. Eram jovens e entusiastas. Sim, concordou a Grande Empresa, passaram por uma concorrência feroz. Foram selecionados mais pelo sonho do que pelas habilidades técnicas. Jovens guerreiros, em idade de luta. Entusiastas capazes. Não queria atrapalhar o futuro deles, mas não podia assinar um documento sem saber de que se tratava. Só isso. Sairia, sim, quando chegasse o momento, pela porta da frente e por conversas transparentes. Contratos claros, conversados, acordados. Situação adversa, sem dúvida, mas Sr. Silva fez-se compreender. Foram-lhes concedidas quarenta e oito horas, prazo dentro do qual deveria se entender com os jovens, data limite da tão aguardada assinatura.
Vida em suspensão: nosso futuro, diziam os jovens; nossos negócios, dizia a Empresa; meu sonho sonhado junto, dizia Sr. Silva. Advogados acionados. Que esquecessem todas as demandas e focassem em um acordo do primeiro desacordo. Quem favorece quem, quem prejudica quem. Todos ganham um pouco, todos perdem um pouco. Aceito isso, recuso aquilo. Não há mais tempo. Meio-dia é o prazo final. A Grande Empresa cansou-se do enguiço: se não consertasse a peça, ela mesma iria trocá-la. Pendências até às onze horas e quarenta e oito minutos. Às onze horas e cinquenta e quatro minutos, todos salvos. Assinatura enviada por meio eletrônico. Coisa boa tecnologia.
Despressurização da panela. Garganta que arranha, estômago que vira. Um escalda-pés, uma boa música, um remédio para o sono e o desejo de uma noite bem dormida. De volta aos três negócios diários, ao convívio tranquilo com a família, aos imprevistos do mundo conhecido.
Jovens entusiastas chamam-no de novo. Eram jovens. Entusiastas. Desculpavam-se pelos mal-entendidos. Reconheciam a falta de transparência. Gostavam muito do anjo e valorizavam a importância do empurrãozinho inicial. Sr. Silva viu seus meninos tornados homens, prontos a pegarem o elevador. Também gostava deles. Sonharam juntos, não era mesmo? Iria acompanhá-los até certo ponto, depois, teriam base sólida para caminharem sozinhos. Eram jovens. Entusiastas. Meninos do mundo.
Elissa Khoury
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