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  • Foto do escritorElissa Khoury

Os cedros

Atualizado: 7 de nov. de 2020



“Filha, precisamos escrever um livro sobre o cedro.” Albert Boutros Khoury (2017)


“Lissinha, a árvore mais linda do mundo é o cedro.” Olga Lauand Aun (1978)


“Les cèdres du Liban sont les reliques des siècles et de la nature, les monuments naturels les plus célèbres de l’univers. Ils savent l’histoire de la terre, mieux que l’histoire elle-même.” Alphonse Lamartine (1838)

(Os cedros do Líbano são as relíquias dos séculos e da natureza, os mais célebres monumentos naturais do universo. Eles conhecem a história da Terra melhor do que a própria História. – Alphonse Lamartine – tradução livre.)

Não sei escrever sobre árvores, mas cresci ouvindo histórias sobre os cedros. Testemunhas do tempo na Terra, já foram cantados, citados e fotografados de todas as maneiras por reis, sacerdotes, pesquisadores e artistas. O registro mais antigo de que se tem notícias é o poema épico Gilgamesh, uma das primeiras obras da literatura mundial, situado por volta de 2.700 a.C.


No mundo antigo, a madeira dessa árvore foi explorada pelos assírios, babilônios, persas e egípcios. Madeira que construiu embarcações, palácios e o templo de Salomão, em Jerusalém. Mencionada na bíblia mais de 70 vezes, o cedro recobria as montanhas do Líbano, que o elegeu como símbolo de sua bandeira. De tanto ser explorado por sua durabilidade e resistência, foi desaparecendo. Os Cedros de Deus, floresta que resiste no Líbano, tornou-se Patrimônio Mundial da Unesco. Todas essas informações são encontradas em rápidas pesquisas pela internet. E em fotos. Muitas.


Minha avó, aqui no Brasil, conseguiu plantar um cedro em seu jardim. No quintal de casa, em plena São Paulo. Na época, eu achava que árvore era árvore: raiz, tronco e galho, podendo variar no tamanho e no formato. Não entendi a comoção gerada quando soubemos que uma paisagista tinha arrancado o cedro do jardim e o descartado. Achou que era uma planta qualquer, incongruente com o desenho planejado. O luto durou mais de mês. O que havia de tão especial no fato? Não era só plantar outro? Só depois de crescida, entendi que cedros não são naturais do Brasil. Conseguir que algum conterrâneo libanês voltasse da terra de origem com uma muda nas mãos era, em si, uma aventura. Primeiro, era preciso ter intimidade com o viajante para pedir uma encomenda dessas. Contando com a boa vontade do amigo, ele teria que ir atrás de uma muda e cuidar da planta até a hora de voltar para o Brasil. Torcer para que a viagem não fosse devastadora à plantinha expatriada. Rezar para não ser barrado na alfândega por transporte ilegal de espécies vegetais. Depois, plantá-la e hidratá-la todos os dias na esperança de que vingasse. Três tentativas fracassaram. A quarta, orgulho da família, crescia em seu ritmo até ser vítima da ignorância alheia. Com o estreitamento da fiscalização alfandegária, não houve avó, amigo ou parente que conseguisse substituir a perda. Tornou-se história de família.


Meu pai, libanês nato, contava-me sobre três árvores que marcaram sua infância; o cedro entre elas. Por lembranças que não são minhas, sei que a floresta de cedros de uma região chamada Becharre, lá pelos anos de 1950, foi palco de um momento inesquecível. Fairouz, conhecida como a melhor cantora do Líbano, se não do Oriente Médio, cantou "Aatini al nay wa Ghanni" (dê-me a flauta e cante), música baseada num poema de Gibran Khalil Gibran, filho da terra de Becharre e um dos mais famosos poetas de lá. Uma profusão de sentimentos e de felicidade. Emoções de segunda mão. (Se cometi algum erro de referência, peço desculpas e acolho correções.)


Li textos, pesquisei simbologias, vi fotos e todas essas informações povoaram meu imaginário. Sólidos, perenes, majestosos. Em medidas, os cedros podem atingir uma altura de 37 metros; um diâmetro de tronco de 15 metros e até 90 metros de circunferência de copa. Números consideráveis para quem entende de medidas. Para mim, faço cara de impressionada e finjo que tenho noção de espaço.


Até o dia em que fui visitar uma das florestas de cedros do Líbano: Al-Shouf Cedar Reserve. Como tiveram serventia desde as primeiras civilizações humanas, se não forem preservados, os cedros viverão somente nos livros e em memórias de segunda, terceira ou quarta mão. Paguei o bilhete de entrada e escolhi um dos percursos possíveis, conforme o coração e as pernas do visitante. Um mapa preso a uma estaca mostrava as trilhas, sem versão impressa. A mim, restava lembrar-me de Chapeuzinho Vermelho e não me desviar do caminho.


Primeiro veio a brisa. Mesmo no verão, o alto da montanha permanecia fresco sob a sombra das árvores. Com a brisa veio o cheiro: um cheiro verde, fresco, intenso. Cheiro de cedro!


Na reserva, distribuem-se espécimes de todas as idades. Nos exemplares jovens, parecidos com pequenos pinheiros, não me demorei muito; nos adultos, sim. Nestes, o tronco se expande para os lados e cria espaços de acolhida. Um convite a nos sentarmos ali. Aconchego. Os ramos, perpendiculares ao tronco não se entrelaçam; crescem paralelos, unidos no infinito. Recebem-nos com ar bonachão, pois são mais largos do que altos. Braços abertos, imensos. É preciso percorrer a pé a sombra gerada por suas copas, juntar tantas pessoas quantas forem necessárias até circundar seus troncos e confundir os olhos na tentativa de vê-los por inteiro. Não há fita métrica que explique esse tamanho. Majestosos.


O cheiro dos cones e o toque do tronco nodoso é tão intenso, que as folhas-agulhas precisam me cutucar para que eu perceba tantos tons de verde. Tantos. Vontade de sair da trilha e me perder num abraço de cedro. Logo eu, que nunca pensei em abraçar árvore na vida. Do outro lado do mundo, onde ninguém me conhece, permito-me esse desvio de rota. A casca áspera que toca meu rosto esconde paz por debaixo dela. Casca dura, nodosa, imperfeita e real. Sinto que segue firme, enraizada, inabalável. A sustentação das raízes fornece a base para que alcance o céu. Fico. Não quero ir. Abraço forte, sólido, protetor. Áspero na superfície, sereno em profundidade.


Sinto a força da seiva que circula. Sinto o brilho da luz que sobe e desce. Sinto o calor que me aconchega. Abraço constante, eterno. Aqui te acho. Árvore força, árvore vida, árvore história. Tudo vê, tudo ouve, tudo dá, nada pede. Quero que seja minha casa, meu repouso, meu aconchego. Quero que seja minha força. Ensina-me a estar assim, sempre de braços abertos, iluminada pelo sol, alimentada pelo chão. Fico. Fico mais. Não quero mesmo ir.

O tempo urge, o parque fecha, é preciso seguir. Sigo.

No caminho, eis que surge ele...

Num instante, todas as canções, todos os versos, todas as referências fazem sentido. Reverencio-o. Silencio.

“Filha, precisamos escrever um livro sobre o cedro.” – Albert Boutros Khoury (2017)


“Lissinha, a árvore mais linda do mundo é o cedro.” – Olga Lauand Aun (1978)


“Les cèdres du Liban sont les reliques des siècles et de la nature, les monuments naturels les plus célèbres de l’univers. Ils savent l’histoire de la terre, mieux que l’histoire elle-même.” – Alphonse Lamartine (1838)

(Os cedros do Líbano são as relíquias dos séculos e da natureza, os mais célebres monumentos naturais do universo. Eles conhecem a história da terra melhor do que a própria História – Alphonse Lamartine)



Elissa Khoury

 

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