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Foto do escritorElissa Khoury

Idylla



Idylla considera sua vida perfeita. Engenheira de profissão, é casada com um homem que caminha a seu lado, ambos bem-posicionados no mercado de trabalho. Cuidam do sono, da alimentação e praticam atividade física regularmente. Têm um filho adolescente lindo, conseguem lhe proporcionar uma boa educação e viajar juntos nas férias escolares dele. Há pouco finalizaram a tão sonhada moradia. Um apartamento com móveis e objetos de artistas que admiram e dos lugares do mundo por onde andaram. Sim, sua vida é perfeita. Até agora.


O que Idylla não aprendeu na faculdade, mesmo sendo a mais renomada instituição de ensino do país, foi o significado oculto dos números e a geometria sagrada. Os cálculos exatos servem para algumas situações práticas, mas a perfeição não pertence ao humano. A esse que se denomina sapiens, cabe apenas buscá-la e, para tanto, muito se erra antes de se acertar. Na faculdade, isso não foi ensinado; na escola, também não. Em casa, foi protegida dos males do mundo como um certo Gautama. Até agora.


Conheceu a finitude de pessoas queridas do jeito que sua família foi capaz de conhecer: silenciando-se. Há assuntos sobre os quais não se fala, embora os corpos os denunciem em tiques, dores de todos os tipos, quedas de cabelo, inapetência ou compulsão alimentar, reações desproporcionais a acontecimentos cotidianos. Não se fala, segue-se. Em (aparente) perfeição. Até agora.


Até o dia em que descobre que o mau jeito na coluna do filho, por causa de uma falta sofrida em um dos campeonatos de futebol da escola é, na realidade um sério desvio de coluna, existente desde a infância. Sério, desde a infância, e ninguém nunca tinha percebido. Idylla falhou.


Uma última gota faz o copo transbordar. Idylla transborda. Falhou. Falhou? Como assim falhou? Com o próprio filho? Este ser tão amado e tão perfeito? Dezessete anos, e ela não percebeu que seu menino tinha um desvio na coluna? Como pode estar tão cega? O que será dele? Deles? Da família? Falhou como mãe, como esposa, como filha! Como se portar diante da família e comunicar que seu menino, sim, ainda é um menino, tem uma questão física que ela não percebeu? Não percebeu! Como se encarar no espelho sabendo que não viu o debaixo do nariz? Como se considerar brilhante, a primeira aluna da melhor Universidade do país, se não foi capaz de cuidar do próprio filho?


Idylla transbordou. Pelo filho, por sua imperfeição, por se descobrir humana, por todas as dores silenciadas. O tapete da vida foi levantado e o que estava debaixo dele apareceu. E agora? Não pode mais deixar de ver o que vê. Onde estava ela para ter falhado a esse ponto? Como poderá pensar no futuro do menino se ou quando ele quiser sair de casa para fazer uma faculdade em outra cidade, em outro estado, em outro país? O que será dele? O que será dela sem ele por perto? O que será de seu casamento, de sua casa, de sua profissão? Idylla falhou. Duvida de sua capacidade de fazer qualquer coisa.


Qual o sentido disso tudo? Ela, que sempre teve total controle sobre todos os aspectos de sua vida, levar uma rasteira dessas? Para que tanta dedicação e tanto trabalho se não foi capaz de enxergar o próprio filho? O menino será infeliz por culpa dela! Quer sumir, retroceder no tempo, apagar a vida e recomeçar do zero. Transborda.

Depois da culpa, iniciam-se os condicionais: se tivesse feito check-ups no filho desde a mais tenra infância, se um pediatra mais eficiente tivesse sido procurado, se o filho não caísse quando aprendia a andar, se não mais trabalhasse para acompanhar de perto o desenvolvimento do menino, se não engravidasse, se não tivesse se casado e, enfim, se não tivesse nascido!


Quando os condicionais lhe tiraram o apetite, não houve espanto: poderia ser passageiro, como ocorrera em outras ocasiões. Quando os condicionais lhe tiraram o sono, era aceitável, pois fora um choque para todos. Quando lhe tiraram o asseio e a grudaram na cama, sem vontade de se levantar ou de ver a luz do dia, foi preciso uma atitude – e ela veio em uma caixa com tarja preta, duas vezes ao dia, com dosagem a ajustar, conforme as reações do corpo. Também em conversas semanais com uma profissional conhecedora das dores humanas. Mãos estendidas a acolhem. Mãos estendidas seguram as suas.


Há de se saber falível. Há de se saber humana. Há de se saber perfeitamente imperfeita. Sua vida começa agora.


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