Em 2019 fiz um curso no Instituto Brincante sobre narração de histórias com Cristiane Velasco. Na conclusão de nossos estudos, deveríamos escolher alguma história para contar. Qualquer uma. Encantei-me particularmente pela que li no livro Reis, moscas e um gole de astúcia, das autoras Susana Ventura e Helena Gomes, editado pela Biruta. O conto chama-se “As três filhas do colhereiro”. A história retoma o conto “Barba azul”, cujas múltiplas versões estão disponíveis na internet. Consta que o primeiro registro escrito dela foi de Charles Perrault, em 1697, publicado no livro Contos da mamãe Gansa.
Na época da formação, não soube por que estaria fascinada por tema tão assustador. Assim como fazem as crianças quando encantadas por algum conto de fadas, li e reli a narrativa incansavelmente até ser possível contá-la. Não a tinha digerido ainda, por isso mesmo contei-a. Por esses caminhos da vida, este ano, encontrei um curso que propôs um mergulho na história do Barba azul, ministrado por Ana Luisa Lacombe e organizado por A Casa Tombada. Nele, foi possível compreender as múltiplas camadas por detrás da história, as tantas leituras possíveis e algumas de suas versões. Se a trama foi ou não inspirada em personagens reais, isso é uma curiosidade extra: aquele temperinho que deixa a comida mais apimentada. Na verdade, o que permitiu compreender meu fascínio foram as releituras: as versões escritas, a ópera, a dança, o cinema e a psicanálise. E todas as reverberações em histórias diversas, conectadas nessa imensa teia que une todas as narrativas à condição humana.
Dizem que são três nossas reações diante de situações-limite: fugir, paralisar ou enfrentar. Barba azul é a representação de uma situação-limite. Coloca-nos diante de um predador e cabe à personagem que se casa com ele decidir se foge da situação na qual se meteu, paralisa com ela ou enfrenta-a.
Em “As três filhas do colhereiro”, o predador é um mouro encantado que, por imprudência do colhereiro, consegue desposar suas filhas. Uma de cada vez, da mais velha para a mais nova. Três são nossas atitudes diante de situações-limite. Caberá à terceira filha enfrentar o mouro. Fui as três filhas do colhereiro. As duas primeiras, conheço-as de longa data. A terceira, tem sido minha descoberta diária. Se hoje publico esse texto aqui é porque resolvi dar as mãos à terceira filha.
Que tenhamos a curiosidade de visitar quartos escuros, a coragem de jogar luz no que não gostamos de ver, a ousadia de nos erguermos depois do choque, a confiança de sermos capazes de enfrentar nossas sombras, a força de vencê-las e integrá-las naquilo que somos.
Se sentirem o impulso de (re)lerem o conto, sugiro que o façam seguindo as orientações do narrador da ópera de Béla Bartók:
“Ouçam, há uma história a ser contada, uma lenda guardada. Onde devo buscá-la? Era uma vez... Fora ou dentro de mim? Há uma antiga lenda... O que ela significa, cavalheiros e damas? Conforme a música começar, vocês vão me ver observando vocês. As cortinas de suas pálpebras vão se abrir. Onde está o palco? Fora ou dentro de vocês, cavalheiros e damas? Observemo-nos de perto assim que a música iniciar. De onde ela vem? Ouçam-na, reflitam sobre ela, cavalheiros e damas. A música soa, as chamas ardem. Deixem os personagens iniciarem. Era uma vez um antigo castelo, tão antigo que até a lenda sobre ele se perdeu no tempo. Ouçam a música. Ouçam-na e tenham cuidado.”
(Tradução livre da narração inicial da ópera Bluebeard’s castel, de Béla Bartók. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=p9Aq2WWds8k. Acesso em: 05 jul. 2020)
Elissa Khoury
Referências de leitura para quem quiser se (re)conhecer nesta história:
“Barba Azul”. In: Marina, Avila (curadoria.) Contos de fadas em suas versões originais: edição de colecionador. São Paulo: Wish, 2019. p. 214-221.
“As três filhas do colhereiro”. In: Gomes, Helena; Ventura, Susana. Reis, moscas e um gole de astúcia: contos de fadas para pensar sobre justiça. São Paulo: Biruta, 2018. p. 11-24.
“O barba azul”. In: Estés, Clarissa Pinkola. Mulheres que correm com lobos: mitos e arquétipos da mulher selvagem. trad. Waldéa Barcellos. 1 ed. Rio de Janeiro: Rocco, 2018. p. 53-58.
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