Vi Luiza mudar quando alguém comentava algo da vida dela na sala cheia de visitas, ou na mesa de restaurantes, bem na hora das refeições entre amigos. Primeiro, suas sobrancelhas subiam, como se quisessem alcançar os cabelos acima da testa; as pálpebras, acompanhavam-nas. Em movimento contrário, o maxilar inferior abria-se. Depois, um olhar de fogo era dirigido para a voz indiscreta, seguido de um menear de cabeça em negativa. Então, a cabeça toda pendia para baixo e, se não houvesse por onde sair, Luiza não dirigia a palavra a mais ninguém dali para frente. Virava motivo de riso, sempre exagerada nas reações emocionais. Se houvesse escapatória, desaparecia em passos rápidos, num rompante Coca-Cola com Mentos. Várias vezes essa cena se repetiu. Até que não mais.
Não sei quando o não mais aconteceu. Sei dos comentários que ouvi em conversas paralelas. Pessoas que se espantavam quando Luiza não comunicava a outras coisas que tinham sido ditas a ela. Às vezes, informações que teriam evitado mal-entendidos.
Deixou de conversar com as pessoas do jeito de sempre. Não a via nas ocasiões habituais nem nos intervalos entre compromissos. Deveria estar com algum problema.
Uma tarde, encontrei-a num balcão de padaria. Sentei-me na cadeira ao seu lado, pedi meu café, um pão de queijo e olhei para Luiza, que olhava para lugar nenhum. Os olhos estavam vidrados num ponto qualquer. Ela comia o lanche com bocadas famintas e corpo todo balançando com o agito dos pés. Achei melhor não puxar conversa.
Derrubei uma parte do café em meu colo quando um grito de “Chega!”, explodiu da boa dela. Minha vez de levantar sobrancelhas e pálpebras e deixar o queixo cair. Ela me viu. Mostrei os dentes numa tentativa de sorriso possível e logo me levantei. Uma urgência para limpar a mancha de café da calça veio em meu socorro.
As mesmas conversas paralelas trouxeram-me a notícia de que Luiza tinha começado a falar sozinha. Primeiro, o isolamento; agora, gritos inesperados.
Por razões que não sei explicar, ou sei, mas opto por não expor, passei a evitar encontros com Luiza. Soube que estava diferente: voltou a falar com as pessoas e mudou de aspecto físico. Mudou como? Engordou. Não estranhei, ganhar uns quilos era normal. Alguns quilos, sim; muitos, não. Deveriam estar exagerando.
Não estavam. Constatei isso eu mesma, em uma reunião de amigos em comum. A voz conhecida chegava em meus ouvidos por detrás, tinha tom alegre e fluido. Fiquei feliz em pensar que não estava mais silenciosa nem com rompantes assustadores. Virei-me para cumprimentá-la e vi. A mudança física dizia que algo não estava bem.
Cumprimentamo-nos, conversamos. Os assuntos oscilaram entre o clima, acompanhado por uma taça de sorvete com calda e farofa doce, e a vida corrida, entremeada por uma fatia de bolo. De minha parte, aceitei um copo de água e o bolo recheado com doce de leite. Como estava mais interessada na fala do que no estômago, cedi a ela meu prato. Perguntei-lhe se estava tudo bem. Tudo ótimo.
O sumiço de cada uma foi assunto em companhia de muita mousse de chocolate. Luiza ingeria-os como se fosse a última refeição de sua vida. Fiquei com meu copo de água e com a constatação de que mais um problema se instalava ali. Um “ótimo”, regado a quantidades inexplicáveis de açúcar, pareceu-me não fazer sentido. O que viria depois? Comprar roupas cada vez maiores, isolar-se do convívio social, cair doente, ou acabar numa clínica para distúrbios psíquicos? Despedi-me com interrogações não exteriorizadas.
Porque queria entender o que se passava, passei a procurar encontros com Luiza. Não foi fácil. Ela não frequentava a padaria como antes. Notícias chegavam desencontradas: sim, seu caso de amor com o açúcar persistia, embora não visse os amigos com a mesma regularidade. Fulano dizia que tinha mudado de turma; ciclano, que continuava falando sozinha; beltrano, que nunca mais presenciara o efeito Coca-Cola com Mentos. Fato é que lugares e pessoas rotineiros, deixaram de ser comuns.
Enfim cruzamo-nos em um jantar entre amigos. Um comentário sobre ela escapou. As sobrancelhas de Luiza voltaram a querer alcançar os cabelos acima da testa, acompanhadas pelas pálpebras e pelo movimento do maxilar inferior, pendente em boca aberta. Só que ela não baixou a cabeça nem desapareceu. O meneio em negativa permanecia, diferente dos outros, como se falasse algo consigo e pronto. O monólogo terminou ali mesmo, e a face voltou a seu estado descontraído. Não tive a chance de conversar com ela, pois estávamos sentadas em pontas opostas e distantes. Algo estava diferente.
Em minhas visitas semanais à padaria, deparei-me com Luiza sentada no numa mesa, cantarolando enquanto colocava a carteira na bolsa. Aproximei-me e cumprimentei-a pela disposição. Perguntei-lhe se estava se sentindo bem, pois há tempos não a via cantarolar. Estava. Tinha terminado seu lanche e precisava sair. Haveríamos de nos encontrar com calma em algum momento. Despediu-se. Não havia vestígios de doce no lugar onde tinha se sentado. Não houve monólogos solitários nem gritos repentinos. Não estava ótima, simplesmente, “estava”.
De semana em semana, acabei encontrando-me com Luiza diversas vezes na padaria. Havia dias em que tinha mais pressa; outros, em que conversávamos. Não só sobre o clima ou o corre-corre diário. Às vezes, passava-me recados e trazia-me boas notícias de amigos queridos. Disse-lhe que tinha ficado preocupada com tantas atitudes diferentes e que gostaria de ter conversado com ela, mas não consegui. Tive medo. E vergonha. Respondeu-me que não havia espaço para aproximações. Contou que aprendeu a criá-lo. Não entendi bem. Pedi que explicasse. Talvez um dia. Perguntei se estava bem. Estava bem. Não ótima e não um verbo solto. Verbo com advérbio de modo. Estava bem.
Elissa Khoury
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