Compartilhar um segredo é um risco. É como se o segredo tivesse desejo de liberdade e escapasse das mãos, do bolso, da cabeça, da boca, do corpo todo de quem o recebeu. Os segredos de Luiza eram desse tipo, não ficavam guardados com as pessoas a quem os contava. Sofria ao vê-los escapulirem. Saíam livres, revelados, dançando no meio da sala cheia de visitas ou na mesa da cozinha, bem na hora das refeições familiares. Faziam questão de se expor em público. O pedido de que não fossem contados a ninguém parecia ter efeito Coca-Cola com Mentos.
Luiza decidiu guardar ela mesma seus segredos. Era a única que sabia cuidar deles, sem excessos de gorduras trans, açúcares ou energizantes. Nutria-os com uma dieta tão balanceada, que acabaram se multiplicando. Ao perceber que o desejo de liberdade dos segredos depende de como são alimentados por quem os ouve, tornou-se uma boa guardiã. Mesmo sem contar a ninguém, a notícia se espalhou. Isso aconteceu devagar, porque é preciso tempo para as pessoas perceberem o que está debaixo dos próprios narizes.
O trânsito dos segredos parece plantão de pronto atendimento hospitalar. O turno muda, as pessoas se revezam, mas o serviço está sempre disponível. Segredos passam de casa em casa sem hora certa para chegar. Transitam por bares, escolas, academias, ligações telefônicas, qualquer lugar em que haja duas ou mais pessoas reunidas. Quando escapam, é um estardalhaço. Alguém sempre se machuca. Geralmente, aquele que contou o segredo, imaginando que seria bem guardado. Como a Luiza.
Acontece que cada pessoa pensa de um jeito. Algumas querem que seus segredos ganhem mundo, mesmo se dizem para não os espalhar. Se essas pessoas contavam seus segredos para Luiza, imaginando que eles voariam livres dali a instantes, isso não acontecia. Para ela, segredo era secreto mesmo. Foi preciso que muitas pessoas dissessem muitos segredos por muito tempo para Luiza antes de entenderem que ela realmente os guardava. Até que um dia, alguém percebeu, e a notícia se espalhou.
Isso não foi nem bom nem ruim, só foi o que aconteceu. Ruim mesmo foi a multiplicação dos próprios segredos dentro de Luiza. Por mais que cuidasse deles, aliás, justamente porque cuidava tão bem deles, o espaço foi ficando pequeno para tantas histórias juntas. Suas tristezas, inseguranças, dúvidas, dívidas, seus medos, desejos, sonhos faziam tanto barulho que ela não conseguia mais dormir. Luíza tinha um problema.
Parou de conversar com as pessoas, parou de sair e quase parou de falar. Quase, porque, logo antes de seus segredos explodirem, ela gritava um “Chega!”, e eles sossegavam. Não por muito tempo. Quem estava ao lado de Luiza num momento desses estranhava. Em vez de falar com os outros, ela começou a falar sozinha. Essa notícia, claro, espalhou-se.
Pronto, agora Luiza tinha dois problemas: um mundo de segredos apertados dentro dela e um monte de pessoas do lado de fora, dizendo que estava doente. Talvez estivesse mesmo, afinal, eram vozes demais dando opiniões, dentro e fora dela, e ninguém que soubesse cuidar de um segredo seu.
Luiza falava sozinha: “Silêncio!”, “Parem de me amolar!”, “Podem ficar quietos para eu dormir?”, “Por que não se comportam como os segredos dos outros se eu cuido de vocês exatamente do mesmo jeito?”, “Por que estão gritando tanto?”, “Por favor, fiquem quietos só um pouquinho...”, “Se me deixarem em paz só por algumas horas, prometo fazer um brigadeiro!”. Silêncio. Total. Por exatas algumas horas. Então, o remédio tinha nome: brigadeiro.
Ao descobrir o antídoto para silenciar os próprios segredos, percebeu que os dos outros não ocupavam espaço. Podia ouvi-los o dia todo, das mais diferentes pessoas, em quaisquer lugares. Por maiores que parecessem, assim que entravam em seus ouvidos, encolhiam a ponto de quase desaparecerem. Eram guardados em uma caixinha mínima, só para o caso de a pessoa que o compartilhou precisar dele em algum momento. Em compensação, seus próprios segredos, continuavam a crescer, ocupar espaço, fazer barulho, atrapalhar.
Brigadeiro virou açúcar. Muitos sacos de bala, tabletes de chocolate, bolos, latas de leite condensado e potes de sorvete depois, Luiza tinha agora três problemas: um mundo de segredos apertados dentro dela, um monte de pessoas do lado de fora dizendo que estava doente e todo um guarda-roupas cheio de peças que não cabiam mais.
As roupas apertadas incomodaram. Resolveu cortar o açúcar da dieta. Primeiro dia, conseguiu. Segundo dia, não dormiu. Terceiro dia, armou-se o conflito: seus segredos se revoltaram, armaram barricada e estavam prontos para abrir fogo contra ela. Pote de sorvete com calda de chocolate em mãos, iria sossegá-los. Só por um tempo. Voltariam. Sempre voltavam... Enxergou e desesperou-se: “O que preciso fazer para sossegarem?!”, “O que vocês querem de mim?!”.
Sair.
Olhos arregalados e silêncio total.
Luiza tinha agora tinha quatro problemas: um mundo de segredos apertados dentro dela, um monte de pessoas do lado de fora dizendo que estava doente, todo um guarda-roupas cheio de peças que não cabiam mais e uma voz nova, vinda de boca nenhuma, falando em sua cabeça. Calafrio percorreu o corpo e coração acelerou. Falta de açúcar? Olhou para pote gelado que segurava.
Não adianta.
Deixou o pote de lado. Silêncio. Olhos arregalados, respiração curta, suor nas mãos. Mais silêncio.
“Quem é?”. A pergunta surgiu contra a vontade, porque a mente de Luiza não tinha sido treinada para sustentar o silêncio.
Seus segredos.
Fechou os olhos, baixou a cabeça, curvou a coluna. Parecia querer voltar para dentro de si. Por que não levou a sério nenhum dos cursos de meditação começados? Por que se incomodou com as roupas apertadas? Por que perdeu a paciência com as vozes conhecidas? Por que se desesperou? Por quê? Numa hora dessas, teria evitado essa situação indesejada.
Indesejada mesmo?
Calafrios pelo corpo todo. É claro que indesejada! Como se arrependia do que tinha perguntado, queria tanto esquecer tudo aquilo e se afogar de novo no açúcar e suas múltiplas variáveis de prazer imediato.
Então, por que perguntou?
Como assim? A tal voz respondia ao que ela pensava? Óbvio que sim! Se a voz estava dentro da cabeça dela, é claro que saberia o que estava pensando. Será que dava para apagar tudo e fingir que nada aconteceu?
Fingir sim, sempre; esquecer, não.
Mais calafrios. Respirou fundo, ergueu a coluna, manteve os olhos fechados. Já que estava ali, seguiria. Era bem melhor falar com uma só voz do que interagir com um estardalhaço de vozes descontentes. Respirou fundo outra vez. Pois bem, qual a alternativa para silenciar vocês? O que querem de mim?
Sair.
Cabeça meneou em negativa. Sair? Para onde? Para caírem no mundo e me fazerem sofrer? Para se exibirem em praça pública, dançarem no meio da sala cheia de visitas ou na mesa da cozinha, bem na hora das refeições familiares? Para me ridicularizarem, zombarem de minhas fraquezas, pisotearem meus sentimentos? Já passei por isso e não é bom. Por que não gostam de mim? Sair como? Por quê? Para quê?
Para você saber que não está sozinha. Nós não fugimos, as pessoas que cuidam da gente de um jeito diferente do que você gostaria. Somos parte sua e, portanto, buscamos guardadores de segredos. Desses que nos recebem sem críticas, que nos ajudam a enxergar o que nossos olhos não veem, que, simplesmente, nos ouvem. Quando saímos, somos capazes de ver nosso real tamanho. Às vezes, somos maiores do que imaginávamos; outras, insignificantes. Não fomos feitos para ficarmos só crescendo, comprimidos. Aqui está apertado, sofrido, vemos muitas variações de nós mesmos se multiplicando a cada dia. Tentamos te mostrar isso de todas as maneiras.
Eu quis deixar vocês livres, mas deu tudo errado!
Nós sabemos. Sentimos muito. Foi ruim para todos. Na verdade, tinha que ser assim para você aprender quem era capaz (ou não) de cuidar da gente do jeito que nós queríamos ser cuidados. Cada um tem seu próprio jeito de lidar com segredos. Você mesma disse que conheceu pessoas que queriam que seus segredos ganhassem o mundo.
Verdade, mas segredo que quer voar livre não é segredo!
Por acaso, só existe um tipo de segredo? Você, que guarda tantos, faça uma lista dos tipos que já ouviu.
Abriu os olhos, olhou para as mãos e começou a contar nos dedos os de que se lembrava: segredo de namorado, de doença, de aflição, de amizade rompida, de relacionamento, de início de gravidez, de noivado não anunciado, de não gostar do que se faz, de não se saber quem é, de sonhos. Dez dedos completos, reiniciou a contagem: de desejos, de casal, de irmãos, de amiga, de pai com filho, de família, de trabalho, de escola, de crianças, de medos. Outros dez dedos completos. Ia para a terceira rodada de contagem. Antes disso, virou os olhos para cima e parou por uns segundos. Parecia não estar mais ali: tem segredo grade e pequeno, sério e divertido e tem segredo que deveria ganhar o mundo de tão bonito que é! Pequeno chacoalhar de cabeça antes de prosseguir: mas que eu não conto, só se a pessoa que me contou deixar.
Tem segredo que deveria ganhar o mundo de tão bonito que é. Quando alguém te contava um segredo desses, que queria voar livre, e você não o partilhava, o que você acha que a pessoa sentia?
– Que eu sabia guardar um segredo. – Disse isso em voz alta.
E a pessoa queria que ele fosse guardado?
– Se não queria, por que me contava?
Porque ele precisava sair. Nesse caso, sair de você também.
– Mas, então, não é segredo! – aumentou o tom de voz e colocou as mãos na cintura antes de prosseguir – Segredo é secreto, confidencial, algo que não deve ser dito a ninguém! Só que, ao guardar eu mesma meus segredos, vocês se multiplicam, e me atrapalham, e me tiram o sono, e não ficam quietos, e me enlouquecem!
Parou, virou os olhos para a direita e para a esquerda, colocou uma das mãos sobre os lábios: O que será de mim depois dessa conversa? Testa franziu, aproximando as sobrancelhas: E agora? Será que precisarei ser internada em alguma clínica de distúrbios mentais? Nunca imaginei que passaria por isso... Meus segredos em uníssono falando comigo? Dando conselhos? Socorro!
Segredo é complexo, como quem os conta. Se a gente consegue sair, partilhado com as pessoas certas, a gente diminui, acalma, porque, na verdade, não somos tantos assim. Somos poucos, sempre os mesmos, em múltiplas variações.
– Alto lá! Não existem pessoas certas. Eu, por exemplo, nunca encontrei nenhuma! – Voltou a falar em alto e bom som.
Quantas você procurou antes de desistir?
– Muitas!
Quantas?
– Já disse que muitas!
Conte nos dedos quantas.
Sem que a voz lhe saísse da boca, começou a mexer os dedos das mãos, num movimento de contagem. Parou depois de completar 11 dedos. Refez as contas uma, duas, três vezes. Arregalou os olhos.
Quantas?
– Poucas. – A voz saiu quase inaudível de sua boca.
Você já é capaz de perceber os tipos de segredos. Será que consegue perceber os tipos de pessoas que contam segredos?
– Como assim?
Pessoas que também sofreram com segredos que ganharam mundo; pessoas que nem perceberam o segredo escapulido, porque já tinham esquecido o que haviam contado; pessoas que mudaram de ideia no meio do caminho, quer dizer, o que era segredo deixou de ser e o que não era passou a ser...
– Pessoas que dizem que não é para sair contando, mas, elas próprias fazem isso e repetem a mesma coisa para todo mundo; pessoas que acham que tem um segredo e, ao contá-lo, descobrem que o melhor mesmo é resolver o problema com quem o causou; pessoas cujos segredos não são segredos mesmo, mas adoram o tom confidencial; pessoas que precisam de alguém que saiba guardar as mínimas coisas que contam, por menos importantes que sejam, só para se sentirem respeitadas e queridas...
Viu? Somos complexos, iguais a quem nos conta. Hoje é linha reta, amanhã é curva, depois de amanhã é tempo demais para pensar no que virá. Já que você teve tempo de ouvir tantos segredos de tantas bocas diferentes, não quer escolher alguém para nos deixar sair?
– Ai, ai, ai, agora vocês estão abusando! Já não basta se fazerem ouvir, ainda insistem em sair?
Precisamos sair. Já não cabe mais nenhum de nós aqui. Queremos que seja por escolha sua, mas, se não for, sairemos de qualquer jeito, e o estrago vai ser grande.
– Se eu não quiser, vocês não saem de jeito nenhum! – De novo, colocou as mãos na cintura e aumentou o tom da voz.
Saímos, mesmo que não em palavras. Seus olhos desesperados, as roupas que não cabem mais, a mania de falar sozinha, isso tudo somos nós nos contando para os outros. Precisamos sair antes de você cair doente.
Luíza olhou para o pote de sorvete deixado de lado. Derretido, mas comestível.
Você pode nos silenciar quantas vezes quiser. Continuaremos nos multiplicando, cada vez mais apertados, sofrendo, fazendo barulho, até nosso limite. Há um limite.
Com um movimento rápido, pegou o pote e experimentou uma colherada. Fez uma careta. Derretido ela até aceitaria, mas quente era demais. Desistiu do pote. Largou-o de novo. Suspirou. Encolheu os ombros. E agora? Não sabia o que fazer. Em quem confiaria? Quem seria capaz de guardar um segredo seu? Não queria sofrer de novo...
Pense em alguém que se machucou como você com um segredo revelado. Lembre-se de como você recebeu essa pessoa. Ela se sentiu acolhida? Voltou? Contou para você outros segredos, sonhos, miudezas?
Depois de um tempo olhando para cima, vendo alguma coisa que ninguém mais vê, Luiza lembrou-se de uma pessoa. Ela chegou sem alardes e contou-lhe um gosto miúdo, um segredinho. Depois, contou-lhe outro e mais outro. As miudezas foram crescendo e, de conversa em conversa, Luiza cuidava dos sonhos dessa pessoa. Um sorriso estampou-se no rosto de Luiza ao recordar a beleza partilhada.
É ela.
Uma chacoalhada de cabeça, seguida de um arrepio. Tinha esquecido que estava ouvindo a voz de seus segredos. Era possível ter certeza? Que garantias tinha de que seus segredos, para ela secretíssimos, não correriam mundo?
Faça um teste. Conte-lhe algo que não seja secreto e peça que o guarde. Se der certo, tente de novo; se der errado, procure outra pessoa.
Para a sorte de Luiza, acertou de primeira a escolha da ouvinte, mas não foi tão simples assim deixar seus segredos saírem. Foram muitos testes de não segredos, balas, fatias de bolos e bolinhas de brigadeiro para acalmar os segredos comprimidos.
Luiza tinha agora três problemas: um guarda-roupas cheio de peças que não cabiam, meio mundo de segredos apertados dentro dela, um monte de pessoas do lado de fora dizendo que andava meio esquisita.
Um dia, Luiza ouviu as pessoas do lado de fora cumprimentando-a por sua disposição. Perguntaram se estava se sentindo bem, pois cantarolava e cumprimentava que visse pelo caminho. Não tinha percebido. Reparou que teve um dia sem excessos de gorduras trans, açúcares ou energizantes. Fazia uma semana que um segredinho tinha saído e permanecido guardado dentro de quem o recebeu.
De semana em semana, Luiza tinha agora dois problemas: um guarda-roupas cheio de peças que não cabiam e alguns segredos apertados dentro dela.
Sem as vozes fazendo alvoroço em sua cabeça, conseguiu espaço para pensar nos segredos que continuava ouvindo e nas pessoas que os contavam. Quem eram e o que realmente queriam. Aprendeu a deixar os segredos das pessoas que não tinham segredos ganharem mundo; a não se irritar com aquelas que pediam para guardar um segredo que elas mesmas espalhavam; a reconhecer se o segredo é só desabafo ou vontade de passar para frente notícia ruim. Os segredos que queriam mesmo ser guardados eram seus velhos conhecidos, então, cuidava deles do mesmo jeito de sempre.
Achou outras pessoas com quem partilhar seus segredos. Já sabia fazer testes. Nem sempre davam certo, mas não machucavam mais, afinal, se ganhavam mundo, nem segredos eram.
Luiza tinha agora um só problema: poucas roupas ainda apertadas. Como demorava para tirar do corpo o excesso de silenciadores de seus segredos! .
Elissa Khoury
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