Da história político-econômica, nada. De notícias de jornal, menos ainda. Sei que é a terra de meus ancestrais, de onde meu pai veio, “importado”, quando se casou com minha mãe. Como toda a família dele estava do lado de lá do oceano, nosso destino das férias era visitá-la. De pequena, conheci o doce das frutas, os aromas das especiarias, o número sem fim de parentes e as visitas a cada família. Conheci também a língua indecifrável que, por esta ou aquela razão, nunca aprendi.
Mais jovem, sei que as visitas à família deixaram de ser feitas no Líbano por conta de uma guerra que durou toda a minha adolescência. Meus primos, na França, contavam que seus filhos ficavam surpresos ao ligarem o interruptor de luz e as lâmpadas acenderem. Estranhavam as aulas não serem suspensas de repente e inexistirem oficiais do exército nas ruas. Estranhavam também o silêncio da cidade. O silêncio da cidade.
Meu avô, pai de meu pai, voltou ao Líbano quando a guerra permitiu e lá morreu. Meu pai estava com ele em seus momentos finais. Sei que minha tia não pôde acompanhar nem o velório nem o enterro do próprio pai por conta de desavenças políticas entre as famílias dos vilarejos vizinhos. Vilarejos são grupamentos humanos, que não ganham a nomenclatura de “cidade” por conta do tamanho diminuto. Um seguido do outro. Desavenças ferozes, insolúveis. E a guerra persistia.
Finalmente, quando pudemos visitar Beirute, sei da sensação inexplicável de ver o que sobrou. Meu corpo guarda essa memória, intraduzível em palavras. Sei de meus primos, tios e amigos, recebendo-nos calorosamente. Oferecendo-nos, como sempre, o que tinham de melhor. Sei dos passeios que fizemos. Sim, muitos. Visitamos ruínas de tempos antigos, desses registrados nos livros escolares de História. Meu pai queria nos mostrar as belezas de seu país, para além da destruição da guerra. Dias melhores viriam.
Sei de todas as visitas subsequentes. Da sensação de andar por museus a céu aberto, pois naquela terra, onde se cava, encontram-se marcas de civilizações anteriores. Como disse, não sei a ordem correta e nem quantas foram. Poderia até pesquisar, para oferecer dados concretos, mas esse texto é de concretudes sensórias, não históricas. Sei de fenícios, gregos, romanos, persas, otomanos, bizantinos, cruzados... Sei de um lugar pelo qual passou Alexandre o Grande; e de outro, por onde passaram cavaleiros das cruzadas.
Experimentei sabores, texturas, aromas. Vi um azul do céu que nunca encontrei por aqui. Senti uma secura do ar que faz o pão parecer torrada mesmo sem ir ao forno. Ouvi uma pessoa falar em aramaico, língua de um tempo longínquo, que me remeteu ao mundo das mil e uma noites. Ouvi, também, o som de instrumentos desconhecidos. Conheci um povo nômade e seu modo de viver em tendas. Vivenciei a generosidade que faz de qualquer espaço alheio o seu. Não importa onde você esteja, estará sempre “em casa”.
O país inteiro pode ser percorrido em apenas algumas horas dentro de um carro. Há tanta coisa a ser vista que uma vida inteira não é suficiente. Andei por florestas de cedros, a majestade de todas as árvores. Reverenciei-os, porque não soube o que fazer diante de tanta beleza.
Sei que é uma terra de conflitos, de vinganças, de dores sem cura, das verdades de cada um. Todas verdades. Todas de cada um. É também uma terra amada, com uma capacidade incrível de renascer das cinzas. Sei que passavam por uma grave crise, pois meus tios e primos mandaram notícias de tempos de fome e poucos recursos. Quem fez o quê com quem para se chegar onde se chegou não é assunto de meu alcance. Sei que vi milhares de pessoas se mobilizando nas festas de fim de ano para oferecerem um alento, uma refeição digna aos que dela estavam privados. Foi pouco? Pontual? Quem é capaz de avaliar a amplitude de um sopro de generosidade?
Sei que a pandemia trouxe novos desafios. Um país falido, em crise política, com a população sem recursos, agora, sendo palco de outra tragédia. Pouco caso, descaso, acaso, de novo, não alcanço. Sei da dor e dos danos, sei do tom das vozes que ouço ao telefone. Sei das imagens que vi pelas diferentes mídias, embora tenha evitado qualquer noticiário. Alienação voluntária, confesso. Há momentos em que não dou conta do impacto.
O renascimento da Fênix deve durar pela eternidade desse povo? Haverá descanso? Conseguiremos, outra vez, testemunhar a resiliência e força dessa gente? Acredito que sim. Preciso acreditar.
Elissa Khoury
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