Pietra aprendeu há pouco que, sem transgressão, não há movimento e que, sem movimento, não há vida. Não sabe transgredir. Acredita ter nascido obediente.
E se um dia calçasse um pé de meia diferente do outro? Arregala os olhos e as sobrancelhas com o absurdo da ideia! Sabe, entretanto, que precisa trair suas crenças. Fazer o imponderável. Respira fundo. Decide-se. Que seja agora. Vai até o guarda-roupas, abre a gaveta das meias, desfaz dois pares, pega um pé de cada par e calça-os. Mãos trêmulas, respiração curta e pulsação sentida na garganta. Está feito.
Fecha os olhos e cruza as mãos diante dos lábios. Por favor, que ninguém olhe para os meus pés no dia de hoje, mas, se olharem, que eu não perceba, mas, se eu perceber, que eu não me importe, mas, se me importar, que amanhã tenha forças para repetir o desacato. Sobrevive ao dia. O fato de morar sozinha, de não sair de casa e dos pés de cada par serem da mesma cor, não diminuiu a alegria da vitória. Ninguém olha para seus pés.
Sete pares de meias trocados depois, vai ao mercado, à feira e à farmácia com a transgressão nos pés, compensada por colares no pescoço e brincos nas orelhas. Antes de cada empreitada, fecha os olhos e cruza as mãos diante dos lábios. Por favor, se olharem para meus pés, que eu não perceba, mas, se eu perceber, que eu não me importe, mas, se me importar, que amanhã tenha forças para repetir o desacato. Na banca de frutas da feira, os adereços superiores são notados: “Veio toda bonita hoje, hein, dona Pietra?”. Ah, nada demais, um dia aqueles acessórios precisavam sair da gaveta, não era mesmo? Se olham para seus pés, não percebe. Nada dizem.
Catorze pares de meias trocados depois, encontra-se com as amigas, janta fora e faz visitas a familiares com um delito em cada pé. Antes de sair de casa, fecha os olhos e cruza as mãos diante dos lábios. Por favor, se perceberem meus pés infratores no dia de hoje, que eu não me importe, mas, se me importar, que amanhã tenha forças para repetir o desacato.
Quando toma café na casa da prima, ouve um comentário: “Pietra, você está diferente. O batom, os brincos e o colar são novidades, sem dúvida. Só que tem algo mais. Ou eu muito me engano, ou você confundiu os pares de meias quando saiu de casa, porque me parece que uma é de cor diferente da outra”. Percebem e anunciam. Mãos trêmulas, respiração curta e pulsação sentida na garganta. Deposita o pires com a xícara de café na mesa de centro, antes que o tilintar da louça a delate. Prefere confessar-se com os lábios. Respira fundo. A prima está certa, sorri e segreda seu experimento. Catorze pares de meia atrás, ousa cada dia mais. Riem. Sobrevive.
Vinte e um pares de meias trocados depois, vai ao mercado, à feira, à farmácia, sai com as amigas, janta fora e visita parentes com seus pés pecadores. Antes de se aventurar, fecha os olhos e cruza as mãos diante dos lábios. Por favor, que amanhã minha falta seja mais atrevida. Brincos, colar e batom podem ou não comparecer ao programa. Na banca de frutas da feira já se brinca de adivinhar o que os pés dona Pietra trarão naquele dia. Cores, modelos, texturas e comprimentos são experimentados aos ímpares. Quando toma café na casa da prima, repara que a anfitriã transgride também. Até mais do que ela, pois tem três filhos com gavetas de meias multicoloridas provendo seus pés. Que lhe empreste algumas de vez em quando, pode ser? Já não se lembra de ter nascido obediente.
Elissa Khoury
Comments