Quando eu trabalhava com livro do chacal, fui apresentada a César Landucci, designer gráfico e artista visual, amigo de Rubens Matuck. Nossos encontros foram recheados por conversas gostosas sobre as artes, as letras e a vida. Numa dessas prosas boas, César falou-me da vontade de fazer um livro sobre um bicho nascido em pedaços e perguntou-me se eu toparia escrever o texto. Um bicho nascido em pedaços? Como seria isso? Ideias diferentes despertam em mim um gostinho bom de curiosidade.
Pedi a ele que me falasse mais sobre a ideia. Em vez de usar palavras, César contou com desenho. Mostrou-me um esboço do que imaginava ser o protagonista da história. Diferente de tudo o que eu já tinha visto, claro, o bicho era mesmo em fatias. Lindo. Uma cópia do esboço ficou nas páginas de minha agenda. Sim, agenda de papel é um objeto afetivo indispensável em meu dia a dia. Outra cópia ficou guardada em algum lugar dentro de mim, germinando. Uma ideia que fica ali, no fundo do ouvido; num ponto do cérebro, aguardando ser atingido por alguma sinapse inusitada; num lugar que não é nem sombra nem luz.
De tempos em tempos, ao manusear a agenda, dava de cara com a imagem do bicho. Olhava-a sem grandes expectativas. Passei a deixar algumas palavras ressoarem em mim: pedaços, fatias, faltas. Num pedaço falta inteireza. Esse bicho nasceu em pedaços. Como será que ele se sente? Inteiro, despedaçado? O que lhe falta? Há outros dele? Onde mora? Para nada disso eu tinha resposta, mas as perguntas iniciais geraram outras. Como ele poderia se sentir inteiro? O que lhe aconteceu para estar em pedaços? Alguma vez foi inteiro ou já nasceu em fatias? O ano foi passando, e as perguntas, ressoando.
Um dia, no trânsito de São Paulo, pensei no bicho: “se tivesse ficado mais tempo com a mãe assim que nasceu, talvez fosse um bicho inteiro”. Podia ser uma possibilidade. Ou não. E se a mãe também fosse em fatias? E se essa raça de bichos sempre tivesse nascido assim? Mais perguntas. Como resolvê-las? Decidi colocá-las todas juntas, num único parágrafo: “Se tivesse ficado mais tempo com a mãe assim que nasceu, talvez, fosse um bicho inteiro. Ou não. Talvez a mãe também fosse em pedaços e só gerasse filhos assim, despedaçados. E se a avó, mãe da mãe, também fosse em fatias? Sem recheio? Uma família inteira, geração após geração, de bichos aos pedaços. Tudo era possível, mas ficar pensando daquele jeito não adiantaria nada. Era preciso tomar uma atitude!”
Quando pensei na atitude, logo me veio uma ideia contrária: procrastinar. O bicho ia se acomodar em seu canto e continuar levando a vidinha dele, sem inquietações existenciais. Foi dormir.
Trânsito, agenda e caneta: texto redigido para não perder a ideia inicial. Pronto, estava feliz com esse perfil de bicho que joga as inquietações para debaixo do tapete e finge que está tudo bem, mesmo quando não está. Será que a ideia era boa mesmo? Nessas horas, ajuda ter um leitor mais experiente, um consultor, alguém a quem recorrer.
Participo, quando possível, de retiros literários. Momentos em que me reúno com pessoas que escrevem e recebo orientações sobre a escrita. Sim, a ideia é boa. Como a história vai se desenvolver? O protagonista, já tenho. Onde ele vive? Qual será seu interlocutor? Sua dificuldade? Meu procrastinador despedaçado precisa de algo que o empurre para a vida. Se ele passar o texto todo sem sair do lugar, a história não acontece. Sozinho, também não vai se mexer.
É um bicho inventado, então, penso que não faz muito sentido interagir com bichos comuns. Precisa entrar em contato com o debaixo do tapete. Quem vai provocá-lo? A noite, mais especificamente, a escuridão, esse lugar de onde saem nossas inquietações. Pode? No mundo das histórias, tudo pode, desde que faça sentido. O que ele busca? A inteireza. Onde ela está? É o que vamos descobrir ao longo da história. E assim, de pergunta em pergunta, a narrativa caminha. Dificuldades, sustos, descobertas, medos, tudo isso recheia as vivências dos pedaços em forma de bicho.
Quando já tenho começo, meio e fim do conteúdo, é hora de cuidar da forma, do ritmo. Confesso que não entendo nada de música, então, aprendo a bater palmas nas sílabas tônicas das palavras. De tanto ler e reler em voz alta, começo a perceber o som das frases. Algumas combinam, outras, não. Reescrevo-as. Submeto o texto a uma leitura experiente: ajuste isso, releia aquilo, reflita, reescreva.
O primeiro parágrafo renasce: “Se tivesse ficado mais tempo com a mãe assim que nasceu, talvez fosse, sim, um bicho inteiro. Ou não. Talvez a mãe, também em pedaços, só gerasse filhos assim: despedaçados. Talvez até a avó, mãe da mãe, já fosse em fatias. A família inteira, de inverno a inverno, de bichos e bichos despedaçados. Seria possível? Ficar pensando daquele jeito não resolveria. Precisava de uma atitude! Acomodou-se, lá em seu canto, como se nada mais existisse. Enrolou-se, enroscou-se, no aconchego do conhecido. Fechou os olhos. Precisava dormir... "
O texto todo forma uma unidade coesa. César ainda não sabia que a história tinha nascido. Será que gostaria dela? Lembrava-se de tê-la sugerido? Arrisco. Claro que se lembrava. Ficou feliz de poder concretizá-la em imagens. Mais um ano se foi até que o conteúdo de fato permeasse o artista. Só então conseguiu dizer com traços e cores sua própria versão do que eu disse com letras e pontuações. O caminho teve altos e baixos, idas e vindas, frustrações e avanços. Vimo-nos no bicho: ele nos despedaçou e redimiu. Valeu por cada experiência proporcionada.
Espero que possam conhecê-lo em breve.
Elissa Khoury
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